Prefácio ao livro Lou – Minha irmã, minha esposa

Foi graças a H. F. Peters que conheci Lou Andreas-Salomé, e este prefácio à nova edição de seu livro é um ato de gratidão. Peters traçou dela um retrato completo, embora não dispusesse de todas as informações sobre Lou: foi prejudicado pela destruição de muitas de suas cartas, feita por ela mesma. Graças, porém, à sensibilidade, compreensão e empatia do autor, adquirimos o conhecimento íntimo de uma mulher cuja importância para a história do desenvolvimento da condição feminina é imensa. Peters traçou com amor um retrato que nos comunica o talento e a coragem de Lou.

A falta de um conhecimento total da vida de Lou força nossa imaginação a interpretá-la a luz da luta das mulheres pela independência. Podemos aceitar os mistérios, ambivalências e contradições, porque são análogas ao conhecimento que temos hoje da mulher. Há muitas lacunas a serem preenchidas quanto aos motivos e reações íntimas, aos impulsos subconscientes das mulheres. A história e a biografia têm de ser reescritas. Ainda não dispomos de um ponto de vista feminino para avaliar a mulher, devido a tantos anos de tabus sobre as revelações. As mulheres eram habitualmente punidas pela sociedade e pelos críticos pelas revelações que tentavam fazer. A duplicidade de padrões nas biografias femininas era absoluta. Peters não faz esses julgamentos. Ele nos apresenta todos os fatos de que necessitamos para interpretá-la à luz das novas avaliações.

Lou Andreas-Salomé simboliza a luta para transcender convenções e tradições nos modos de pensar e de viver. Como é possível a uma mulher inteligente, criativa, original, relacionar-se com homens de gênio sem ser dominada por eles? (...)

O conflito entre o desejo da mulher de se fundir com o amado e ao mesmo tempo manter sua identidade própria é a luta da mulher moderna. Lou viveu todas as fases e evoluções do amor, da entrega à recusa, da expansão à contração. Casou-se e levou vida de solteira, amou homens tanto mais velhos quanto mais novos. Sentia-se atraída pelo talento, mas não queria ser apenas musa ou discípula. Nietzsche reconheceu ter escrito Zaratustra por inspiração dela; disse que Lou compreendia seu trabalho como ninguém mais.

Durante muitos anos ela teve o destino das mulheres brilhantes ligadas a homens brilhantes: era conhecida apenas como amiga de Nietzsche, Rilke, Freud, muito embora a publicação de sua correspondência com este último mostre que as relações entre os dois se processavam em igualdade de condições, e Freud lhe ouvia com respeito as opiniões. Lou escreveu o primeiro estudo feminista sobre as mulheres de Ibsen e um estudo sobre a obra de Nietzsche. Seus livros, porém, estão esgotados.

Se foi inspiração para Rilke, também se rebelou contra a dependência e as depressões do poeta. Seu amor pela vida pesou mais, e finalmente, depois de seis anos, rompeu com ele porque, como disse: “Não posso ser fiel aos outro, apenas a mim mesma.” Tinha uma obra a realizar, e devia fidelidade à sua natureza expansiva, à sua paixão pela vida e ao seu trabalho. Lou despertava o talento dos outros, mas mantinha um espaço próprio. Comportava-se como todas as personalidades próprias da época, cujas ligações românticas todos admiramos, quando tais personalidades são homens. Tinha o talento da amizade e do amor, mas não se deixou consumir pelas paixões dos românticos, que os levaram a preferir a morte à perda do amor. Mesmo assim, inspirou paixões românticas. Pela atitude, pelo pensamento e pela obra, estava à frente do seu tempo. Tudo isso Peters transmite, sugere, confirma. (...)

Era natural que Lou me fascinasse, me perseguisse. Mas eu me indagava o que ela significaria para uma mulher jovem, uma jovem criativa e moderna. Foi então que resolvi discutir Lou com Barbara Kraft, que num estudo sobre ela escreveu: “Durante a vida de Salomé (1861-1937), ela presenciou o fim da tradição romântica e se tornou parte da evolução do pensamento moderno, que frutificou no século XX. Salomé foi a primeira ‘mulher moderna’. A natureza de suas conversa com Nietzsche e Rilke antecipou a posição filosófica do existencialismo. E, por seu trabalho com Freud, ela figurou com destaque na evolução inicial e na prática da teoria psicanalítica. A princípio, eu a vi como heroína – como merecedora do culto do herói, no que esse culto tem de mais positivo. As mulheres sofrem hoje, tremendamente, da falta de identificação com uma figura feminina heróica”.

Barbara achava que as figuras femininas heróicas quase não existiram porque suas biografias eram geralmente escritas pelos homens. Como mulheres, buscávamos mulheres que nos dessem força, que nos inspirassem e encorajassem. É o que faz o retrato de Lou por Peters. (..)
Discutimos as razões que a levaram de uma relação para outra. Podíamos ver que, quando muito jovem, Lou temeu o domínio de Nietzsche, que buscava um discípulo, alguém que pudesse perpetuar o seu trabalho. Depois de ler as cartas de Lou a Rilke, podemos compreender por que, depois de seis anos, ela achou haver esgotado seu relacionamento com o poeta, e o deixou. Demonstrou notável persistência na manutenção de sua identidade. Com graça e sabedoria, expressou a percepção feminina em suas conversas com Freud, que lhe respeitava as opiniões. Preservou sua autonomia, embora cercada por homens vigorosos, até mesmo dominadores. Como era bela, o interesse masculino passava com freqüência da admiração à paixão; se Lou não correspondia, era considerada fria. Sua liberdade consistiu em dar expressão às suas necessidades inconscientes profundas. Viu a independência como a única maneira de realizar o movimento. E, para ela, o movimento era o crescimento e a evolução constantes.

Copiou dos homens o modo de vida, mas não foi uma mulher masculina. Exigiu a liberdade de mudar, evoluir, crescer. Afirmou sua integridade contra o sentimentalismo e as definições hipócritas da fidelidade e do dever. Ela é excepcional na história de sua época. Não foi uma feminista, de modo algum, mas lutou contra o seu lado feminino para manter a integridade como indivíduo.

H. F. Peters, que compreendeu Lou perfeitamente, cita a síntese que ela fez de sua própria vida: “A vida humana – na verdade, toda a vida – é poesia. Nós a vivemos inconscientemente, dia a dia, fragmento a fragmento, mas, na sua totalidade inviolável, ela nos vive”.
Anaïs Nin

Lou Andreas Salomé e Rilke

Qualquer que tenha sido a reserva de Lou ao conhecer Rilke,não pôde resistir por muito tempo ao seu cerco apaixonado.

Em suas memórias, ela escreveu:

" Fui sua mulher durante anos porque você foi a primeira realidade, onde homem e corpo são indiscerníveis um do outro, fato incontestável da própria vida.Eu poderia dizer literalmente aquilo que você me disse quando me confessou o seu amor: 'Só você é real'. Foi assim que nos tornamos marido e mulher, antes mesmo de nos tornarmos amigos, não por escolha, mas por esse casamento insondável. Não eram duas metades que se buscam: trêmula, nossa unidade, surpresa, reconhecia uma unidade pré-ordenada. Éramos irmão e irmã, mas como nesse passado distante, nates que o casamento entre irmão e irmã se tornasse sacrilégio."



Apesar dessa interpretação dada por Lou à sua aventura amorosa, esse acontecimento permanece um enigma.Depois de muito tempo, Lou escreveu que parecia haver dois Rilkes, um auto confiante e um outro dominado por uma introspecção mórbida.Era um espetáculo assustador ver o "outro Rilke" surgir bruscamente, esperou que seu amor o curasse, mas seus receios aumentaram cada vez mais e resolveu pôr fim àquela aventura.Não obstante, entre o brusco começo e o fim também brusco, quase três anos de amor e poesia transcorreram.


Retirado de: Lou, minha irmã,minha esposa.

Segue fragmentos de cartas:


Longe de Lou, Rilke resolveu passar algumas semanas na casa de um amigo. Foi quando conheceu Clara Westhoff, uma escultora aluna de Rodin. Ele a pediu em casamento, surpreendendo Lou, que lhe escreveu uma carta alguns dias antes das núpcias.


"Agora que tudo é sol e calma ao redor de mim e que o fruto da vida conquistou sua redondeza madura e doce, a lembrança que nos é certamente ainda cara a nós dois daquele dia de Waltershausen, em que vim a ti como uma mãe, me impõe uma última obrigação (...) Se te aventuras livre no desconhecido só será responsável por ti mesmo".

Pouco depois, recebeu o seguinte poema escrito por Rilke:


"Permaneço no escuro como um cego
Porque meus olhos não te encontram mais
A faina turva dos dias para mim
não é mais que uma cortina que te dissimula.
Olho-a, esperando que se erga
esta cortina atrás da qual há minha vida
a substância e a própria lei da minha vida
e, apesar disso, minha morte.
Tu me abraçavas, não por desrazão
mas como a mão do oleiro contra o barro
A mão que tem poder de criação.
Ela sonhava de algum modo modelar –
depois se cansou,
se afrouxou
deixou-me cair e me quebrei.
Eras para mim a mais maternal das mulheres,
eras um amigo como são os homens,
eras, a te olhar, mulher realmente, mas também, muitas vezes, criança.
Eras o que conheci de mais terno
e mais duro com que tenho lutado.
Eras a altura que me abençoou –
te fizeste abismo e naufraguei."


Lou a Rilke
Göttingen, 11 de junho de 1914 Meu velho e querido Rainer, – saiba você, chorei terrivelmente lendo sua carta, que estava ridícula, mas nós podemos, às vezes, impedirmo-nos de ver a vida acolher desta maneira os mais preciosos de seus filhos. Eu o acompanhava com todos os meus pensamentos – se é que se pode chamar isto “acompanhar”, quando nos perguntamos a cada dia onde se pode encontrar alguém: se este subiu para as alturas até os confins da humana atmosfera, ou se caiu no fundo de uma cratera, debatendo-se entre os mil fogos que nunca queimaram no seio da terra. Quando você me escrevia a respeito de minhas “Cartas”, com toda espécie de “s” tornando-as alegremente loucas, parecia-me concebível que um período produtivo tivesse lhe invadido, provocado por alguma experiência afetiva; e é sempre este o momento em que um terrível perigo parece tão próximo quanto uma grande vitória. É fácil então, para certas almas, sacrificar um nada de produtividade que lhe viesse a favor de uma experiência fortemente vivida; e, em certas ocasiões, outras, criadoras por natureza, conseguissem fazer o inverso; mas acontece que muito mais freqüentemente, sem dúvida, as duas tendências se encontram na metade do caminho e morrem por estarem mutuamente destruindo a estrada. Mas – embora desta vez você seja o único responsável por esta morte, pois você não tem motivos para desculpas, nem álibis – uma coisa entretanto fica fora de dúvidas: a maneira como você ressuscita isto em suas palavras é exatamente, oh! é exatamente a antiga, a íntegra potência que dá vida àquele que está morto – e, além do mais: o luto provocado pelo acontecimento é aquele de uma alma cujo sentimento mais sutil, mais interior, em nada saberia ser mais inocente do que te acusas.....

....E, no entanto, é você mesmo – como é você também que em um momento qualquer é incapaz de trabalhar ou o faz negligentemente. E certamente você não tira nada, e nem pode tirar, do fato de que este, apesar de tudo, não é você, pois não saberíamos nos alimentar do pão fechado em um armário, não mais que nos nutrimos da espera dos grãos do trigo a colher nos campos. É porque, se padeci por este motivo, eu padeceria novamente como uma outra espectadora, que ao mesmo tempo fica comovida com o pensamento de que o pão e os frutos do campo existem. Eis o que resta agora sob o “vidro duro e frio da vitrine”; você não o possui, e o vidro reflete a você mesmo. Portanto, estava aí uma prova da grandeza de suas propriedades, e como você quase não as conhecia sob este aspecto – sua profundidade, sua riqueza, – do mesmo modo elas ainda têm a lhe oferecer outras, das quais você não poderia, mesmo hoje, suspeitar, e das quais qualquer coisa muito mais fina que o vidro lhe encobre a visão. Mas para que servem todas estas palavras? No momento você nada experimentará de diferente, se isto é apenas algo de fino ou denso que lhe separa da vida, e toda palavra contrária é estúpida, tola e impotente.

Lou Andréas-Salomé

De Rilke a Lou:

Munique, 8 de junho de 1897 Terça- feira

As flores dos campos que trouxe há uma semana de uma manhã maravilhosa há muito estão deitadas entre as grandes folhas de um terno mata-borrão; mas nesta hora em que as contemplo, sorriem-me como uma recordação cheia de graça esforçando-se por parecer alegres como outrora.- Foi uma dessas horas singulares. Horas que são como o coração de uma ilha cingida por densas florescências: para além destas muralhas primaveris, as ondas respiram quase imperceptivelmente, e não se avista um únici barco que venha do passado distante, nem um só que queira continuar para o futuro. O fato de se lhe dever seguir um regresso ao quotidiano não pode esbater estas horas insulares. — Elas permanecem à margem de todas as outras horas, como que vividas ao mais alto nível do ser. Este tipo de existência insular e mais elevada é a meus olhos o futuro de muito poucos.


Uma felicidade toca, floresce ao longe,
Alastra em volta da minha solidão
E procura tecer para os meus sonhos
Um enfeite de ouro.
E ainda que
A minha pobre vida esteja gelada de madrugada
Inquieta e neve dolorosa,
A hora santa virá para ela,
Um dia, da sagrada Primavera......

Desejaria estar já em Dorfen. A cidade é tão ruidosa, estranha. E, nos períodos de maturação interior, nada de estranho deve aflorar as nossas margens. Um dia, daqui a muitos anos, compreenderás completamente tudo o que és para mim. O que é a fonte da montanha para quem está sequioso. E se quem está sequioso é um homem íntegro e agradecido, não vai procurar frescura e força à sua claridade para voltar a partir para o novo sol; sob sua proteção e suficientemente perto para ouvir o seu canto, constrói uma cabana e permanece neste vale pacífico até que os olhos estejam cansados do sol e o seu coração transborde de riqueza e de compreensão. Eu construí cabanas e — permaneço. Minha límpida fonte! Como te estou agradecido. Não quero mais ver flores, céu, sol — a não ser em ti. Tudo é absolutamente mais belo, mais fabuloso, quando o olhas: a flor nas tuas margens, que — sei isso do tempo em que tinha de ver as coisas sem ti — treme de frio no musgo, solitária e terna, reflete-se clara na tua bondade, vibrante, e quase aflora com a sua pequena cabeça o céu que irradia da tua profundeza. E o raio de sol que chega empoeirado e único aos teus limites transfigura-se e multiplica-se em chuva de centelhas nas ondas luminosas da tua alma. Minha límpida fonte. É através de ti que quero ver o mundo, porque, ao mesmo tempo, verei, já não o mundo, mas apenas a ti, a ti, a ti! Tu és o meu dia de festa. Quando em sonhos me junto a ti, tenho sempre flores nos cabelos. Desejaria colocar-te flores nos cabelos. Quais? Nenhuma tem a simplicidade comovente que deveria, nenhuma é suficientemente simples. Em que Maio colhê-las? — Mas creio agora que tens sempre nos cabelos uma grinalda — ou uma coroa... Nunca te vi de outro modo.
Nunca te vi, que não tivesse o desejo de te rezar. Nunca te ouvi, que não tivesse o desejo de acreditar em ti. Nunca te esperei, sem o desejo de sofrer por ti. Nunca te desejei, sem ter também o direito de me ajoelhar à tua frente. Sou para ti como o bastão para o caminhante, mas sem te apoiara. Sou para ti como o cetro é para o rei, mas sem te enriquecer. Sou para ti como a última pequena estrela é para a noite, ainda que a noite mal a distinguisse e ignorasse a sua cintilação.

René


Do livro: "Correspondência Amorosa", Rainer Maria Rilke e Lou Andreas-Salomé, trad. Manuel Alberto, Relógio D'Água Editores,1994, Lisboa. Enviado por: Márcia Maia


E o poema :


Tapa-me os olhos: ainda posso ver-te
Tapa-me os ouvidos: ainda posso ouvir-te
E mesmo sem pés posso ir para tí
E mesmo sem boca posso invoca-te.
Arranca-me os braços: ainda posso apertar-te
Com meu coração como com a minha mão
Arranca-me o coração: e meu cérebro palpitará
e mesmo se me puseres fogo ao cérebro
Ainda ei de levar-te em meu sangue.

Rilke.

LOU ANDREAS -SALOMÉ: A PAIXÃO VIVA

(Do Livro: Os Sentidos da Paixão. Ed. Cia de Letras, 1987, págs. 359-373)

Luzilá Gonçalves Ferreira

Lou Salomé: uma prática de paixão; alguém que viveu a paixão com paixão, e talvez por isso mesmo provocou, até uma idade avançada, o nascimento da paixão nos seres que encontrou em seu caminho: Rilke, Nietzsche, Paul Rée, Tausk e, ao que parece, até mesmo Wagner sucumbiram ao seu encanto e à alegria de viver que transpirava em cada um de seus gestos - e o próprio Freud não parece ter sido indiferente à graça da discípula que ele qualificou de "raio de sol'.

A paixão de Lou pela vida transparecia em seu próprio físico. Freud lhe escreveu um dia: "você tem um olhar como se fosse Natal". E a escritora Helena Klinkberg (citado por Peters): "O sol se levantava quando Lou entrava numa sala". Era um ser luminoso, transparente e lúcido, daquela lucidez talvez de que fala João Cabral de Melo Neto a respeito de Monsieur Teste: "uma lucidez que tudo via, como se à luz ou de dia". Um ser humano para quem a felicidade é condição natural e destino do homem: "dentro da felicidade eu estou em casa". E ainda: "A única perfeição é a alegria".

Essa paixão pela vida, ela a transmitia aos outros, fazendo com que as pessoas ao seu contato desenvolvessem e dessem o melhor delas próprias. O que fez alguém escrever: "Quando Lou se interessa apaixonadamente por um homem, nove meses depois este homem dá à luz um livro. Um interesse pelo outro que o leva a crescer e produzir - mesmo quando esse crescimento e essa produção implicam o sofrimento.

Pois Lou Andreas-Salomé conseguiu realizar, em seus 76 anos de vida, o que nós todos gostaríamos e deveríamos fazer sempre - e não o fazemos por descaso, indolência, medo: tornar a vida o exercício apaixonada de uma busca. Sua exploração em todos os possíveis. Isto que requer a fruição intensa e incessante de coisas e pessoas que nos cercam, de modo que o mundo exterior em nós penetre e a nós se incorpore. Pois a vida, como o dizia Rainer Maria Rilke a propósito de Rodin, "está nas pequenas coisas como nas grandes: no que é apenas visível e no que é imenso".

Antes mesmo do seu encontro com Rilke, Louise von Salomé já intuía essa verdade: desde muito cedo encontramos nela um grande apetite de aprender e de amar - e o objeto de sua atenção podia ser a psicanálise, a curtição de uma paisagem, de uma flor, de um esquilo na floresta ou de um corpo amado.

(.....) Lou escreveu vários ensaios sobre o Erotismo. O primeiro deles data de sua ligação com Rilke. Intitulado reflexões sobre o problema do amor, traz as evidentes marcas da embriaguez física e espiritual que sua autora estava vivendo. Aqui ela assinala, em páginas de um admirável lirismo, a capacidade que tem a paixão amorosa de nos abrir o caminho ao sentimento da totalidade da vida e sua faculdade de nos colocar em estado criativo. O ato amoroso "nos enche a alma inteira (...) de ilusões e de idealizações espirituais, forçando-nos o mesmo tempo a nos chocar brutalmente, sem possibilidade de se esquivar, ao dispensador de uma tal desordem; ao corpo". E Lou escreve:

"Pois, sobretudo, resulta no indivíduo uma espécie de interação ébria e exuberante das mais altas energias criadoras do seu corpo e a exaltação mais alta da alma. Enquanto nossa consciência se interessa vagamente, habitualmente, por nossa vida psíquica, como por um mundo que conhecemos mal e que controlamos ainda pior, que ao que parece forma um com ela, mas com o qual normalmente ela se entende mal - eis que se produz subitamente entre eles uma tal comunhão de enervação que todos os seus desejos, todas as suas aspirações se inflamam ao mesmo tempo."

Por essa exaltação da alma através dos sentidos, por essa impressão que o ato amoroso nos dá de haver ido muito longe, e tocado o indizível, é que ele pode influenciar e favorecer a criação, a "pátria do dizível", como escreveu Rilke. E Lou: "O Mundo da criação e do amor significa: volta ao país natal, entrada no paraíso; o a impossibilidade de criar, ou do amor morto, é, ao contrário, um exílio onde os deuses nos abandonam".

A atividade criadora se apaixona por tudo aquilo que é vida em nós, que é indício do que em nós lateja de mais secreto, e que atinge as raízes do ser. O espírito descobre forças que não possuía ou das quais não se apercebia. Pode voltar àquele estado de inocência primeira que possuiu na infância, redescobre a "novidade" das coisas, com o frescor de uma sensação primitiva: o olhar da criança sobre o mundo que descobre maravilhada; o olhar de Adão diante de Eva recém-saída de si.

Confrontado com os seus longes, o amado vê a si mesmo, e ao mundo exterior, como algo recém-criado. Por isso, às vezes a gente sai do amor como quem saiu de uma catedral, redescobrindo o mundo aqui fora com os olhos renovados. O ato amoroso, vivido em plenitude, obriga os amantes a concentrar em si mesmos tudo aquilo de que são capazes, passível de germinar com a força das plantas na primavera.

"Nesta igualdade original do corpo e do espírito e nesta consciência ingênua de um e de outro - uma criança que acredita em tudo que vê, para quem tudo se renovou, que, cheio de uma fé e de uma confiança sem limites, gostaria de gritar sua alegria ao esplendor inverossímil do mundo, e não saberia saudar de melhor modo a razão senão fazendo cabriolas diante dela... como se balbuciasse em sonho, ele tem algo a dizer sobre estes esplendores ocultos que lhe fizera, ai de nós, esquecer tantas coisas úteis e necessárias."

O ato amoroso transforma o parceiro num "conto estranho e maravilhoso". A Paixão amorosa é uma porta, diferente de todas as outras portas, "em sua arquitetura ornada de elementos ricos de sentido, em virtude de um simbolismo singular". É o caminho por excelência que nos leva a nós mesmos. Por ela "nós não somos um mundo de realidade, somos apenas o espaço e o metteur en scène de um mundo onírico, todo-poderoso, irresistível".

Assim, o amor durará enquanto os amantes forem capazes de oferecer ao outro essa entrega, que dá acesso de modo vital à capacidade de se concentrar neles mesmos, de ser um mundo para si por causa do outro.

A esta altura, a gente poderia se perguntar - não seria esta uma visão demasiado idealizada do amor? Mas Lou não se deixa embalar incondicionalmente pelo êxtase da paixão: esta grande amorosa foi também, segundo a expressão de Freud, uma "compreendedora".

Neste mesmo ensaio, ela nos lembra que no êxtase amoroso, por mais que desejemos nossa fusão com o amado, sempre somos, em última análise, remetidos a nós mesmos. A reconciliação que se fará aqui será sobretudo entre o sujeito e ele próprio, através do outro, mais do que entre o sujeito e o objeto amado.

Num ensaio sobre o erotismo, datado de 1910, e num ensaio posterior, quando Lou já se engajara definitivamente à psicanálise, intitulado Anal e Sexual, ela nos lembra que na união física "a gente não possui um ao outro por meio do corpo, mas apesar do corpo, que, como todo mundo sabe, não se identifica jamais (...) completamente com o todo da pessoa, mas aparece sempre como uma parte dela e resiste à dominação mais viva".

(....) A fusão inteira do nosso ser com o outro, por mais querido que seja, não seria desejável. É preciso que sejamos cada vez mais nós mesmos, para poder ser um mundo para o outro. A relação erótica, remetendo-nos a nós próprios, é uma ocasião de constante renovação: cada vez ela inaugura em nós um ser novo; como um ato de linguagem, cada vez que eu falo a um Tu, é um Eu diferente que fala a um novo Tu: quando digo Eu, já não sou aquela que falava há pouco. A relação erótica é, assim, nela mesma, criação. E o amor um elemento de produção: somos a cada instante outros, encontramos no outro cada vez um elemento novo, diferente, desconhecido, misterioso até - o que dá à relação erótica sua riqueza:

"só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser sentido como tal. Assim, nada há de mais inepto em amor do que se adaptar um ao outro, de se polir um contra o outro, e todo esse sistema interminável de concessões mútuas... e, quanto mais os seres chegam ao extremo do refinamento, tanto mais é funesto de se enxertar um sobre o outro, em nome do amor, de se transformar um em parasita do outro, quando cada um deles deve se enraizar robustamente em um solo particular, a fim de se tornar todo um mundo para o outro."

É preciso que a gente seja sempre, um para o outro, duas deliciosas surpresas fecundas. Aquele mundo da fábula de La Fontaine "Os dois pombos", que aconselha aos amantes: "Amantes, felizes amantes, vocês querem viajar? Que seja pelas margens próximas/Sejam um para o outro um mundo sempre belo, sempre diverso, sempre novo./ Sejam um todo um para o outro, contem por nada o resto".

E Lou analisa esta necessidade de renovação e da existência do mistério na relação amorosa:

"Pois, nos seio mesmo da paixão, nunca se deve tratar de "conhecer perfeitamente o outro": por mais que progridam neste conhecimento, a paixão restabelece constantemente entre os dois este contato fecundo que não pode se comparar a nenhuma relação de simpatia e os coloca de novo em sua relação original: a violência do espanto que cada um deles produz sobre o outro e que põe limites a toda tentativa de apreender objetivamente este parceiro. É terrível de dizer, mas , no fundo, o amante não está querendo saber "quem é" em realidade seu parceiro. Estouvado em seu egoísmo, ele se contenta de saber que o outro lhe faz um bem incompreensível... os amantes permanecem um para o outro, em última análise, um mistério."

Assim, o amor não seria um encontro, mas uma busca. Não quer dizer que chegamos, mas que estamos próximos.

Rilke perguntava-se na Primeira elegia de Duíno: "Não é tempo daqueles que amam libertar-se do objeto amado e superá-los, frementes? Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no vôo mais do que ela mesma". E nas cartas a um jovem poeta, em maio de 1904:

"Assim, para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento, cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. (...) O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo por si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser: é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe."

Se o amor é uma busca, se o estudo é uma busca, a arte uma busca, a vida inteira é também busca. E o amor e a paixão são a mola dessa busca.

É preciso buscar com amor, com paixão. Amar a vida, amá-la mesmo e sobretudo quando ela chega ao fim, e o espírito e o corpo vêem limitados seu campo de ação. Nos Cadernos íntimos dos últimos anos, Lou Andreas-Salomé dá um balanço de sua vida. Em fevereiro de 1934, isto é, três anos antes de morrer, ela escreve:

"Distingue-se entre os humanos aqueles que se sentem divididos em um passado e um futuro e aqueles que vivem o presente com cada vez mais densidade, sempre mais plenitude. Os orientais acham natural insistir menos sobre a morte do que se passa do que sobre a perfeição do que se acaba, como aprofundamento da realidade. Nós, ao contrário, começamos a ver aquilo que nos chega, apenas sob o aspecto sempre mais sinistro da morte - como tudo o que se observa de um olhar exterior, logo mortífero."

E um pouco mais adiante:

"Sempre não tive a idéia fixa de que a velhice me traria muito? Em meus jovens anos escrevi em algum lugar: primeiro nós vivemos nossa juventude, em seguida nossa juventude vive em nós. Não sei bem, ainda hoje, o que eu queria dizer com isso outrora. Mas eu tinha realmente medo de não atingir a idade de viver esta experiência; eu o sabia profundamente, uma longa vida, com todas as suas dores, vale ser vivida,. Claro, o valor da vida pode nos ficar escondido pelos desgastes sofridos pela nossa carne, nosso espírito (...) do mesmo modo que a juventude mais empreendedora pode se ver entravada em sua felicidade e em seu sucesso, por um fatal concurso de circunstâncias; mas, por além das perdas, a velhice adquire muito mais que a famosa aptidão à serenidade e à lucidez: ela permite que se chegue a uma plenitude mais acabada."

A velhice pode ser, assim, uma volta àquela espécie de paz inicial e retorno do indivíduo a um estado de não-divisão, de fusão primitiva do eu para consigo mesmo, o corpo parece se acalmar relativizando-se; ...

Num ensaio de 1901, escrito aos 40 anos e intitulado A velhice e a eternidade, Lou afirmava: "O velho está liberto de todos os seus limites pessoais e escrúpulos mesquinhos. Retirado lentamente da vizinhança imediata dos outros seres vivos, ele se vê, progressivamente, reintroduzido no grande encadeamento universal".

É preciso amar a vida em todas as suas fases e amar até mesmo a morte. Aqui Eros e Thanatos se dão as mãos - são forças complementares e não contrárias. A morte é a redenção da vida individual, escreve Lou num artigo sobre o misticismo russo. Nossa morte não nos separa dos seres que amamos; ela nos entrega de modo mais completo a eles:

No dia em que eu estiver no meu leito de morte

Faísca que se apagou -,

Acaricia ainda uma vez meus cabelos

Com tua mão bem-amada

Antes que devolvam à terra

O que deve voltar à terra,

Pousa sobre minha boca que amaste

Ainda um beijo.

Mas não esqueças: no esquife estrangeiro

Eu só repouso em aparência

Porque em ti minha vida se refugiou

E agora sou toda tua [Hino à morte]

A morte desfaz, assim, a distância entre os amantes, que agora vivem um no outro, sem que o individualismo os separe. A morte não é uma partida, mas uma volta: um retorno do indivíduo àquela união primitiva com as coisas. Por isso não a devemos temer.

A grande biografia de Lou Salomé ainda não foi escrita. Mas, pelo que dela nos resta, fica uma lição final de amor pela vida, de paixão pela vida, de totalização da vida. Por isso Lou desejou ser cremada e que suas cinzas fossem jogadas no jardim de sua casa, em Gottingen: para que seu corpo pudesse se incorporar à terra e ser transformado em planta e flor.

Lou Salomé, Obras.

1892 - Personagens femininos de Ibsen
1894 - Friedrich Nietzsche em sua obra
1895 - Ruth
1896 - Sobre uma alma perturbada
1898 - Fenitschka
1899 - Os filhos dos homens
1901 - Mamãe
1902 - Na zona crepuscular
1910 - O erotismo
1917 - Três cartas a um menino
1919 - A casa e O diabo e sua avó
1928 - Rainer Maria Rilke
1931 - Carta aberta a Freud

Publicações Póstumas
1951 - Revendo minha vida
1952 - Correspondência Lou Andreas-Salomé - Rainer Maria Rilke
1958 - Na escola de Freud
1982 - Cadernos íntimos dos últimos anos

Lou Salomé, uma Biografia.


Louise von Salomé nasceu em São Petersburgo, Rússia, em 12 de fevereiro de 1861, sendo a sexta criança da família e a primeira menina. Lou cresceu num lar harmonioso, onde aprendeu a amar e compreender. O pai, general Gustav von Salomé, era oficial do czar russo. Extremamente afetuoso, exercia a autoridade paterna com amor. Capaz de pequenas manifestações de ternura, como voltar das recepções promovidas pelo czar trazendo bombons para os filhos. Lou considerava o pai como o "primeiro modelo de Deus". A mãe, senhora Louise Wilm von Salomé, era uma pessoa doce, profundamente religiosa e dedicada à família, com grande capacidade de resolução e dona de um temperamento independente. Os pais se amavam muito e o respeito mútuo imperava. Quando a filha nasceu, o general achou natural colocar o nome da esposa, o "nome mais belo do mundo".Lou via na mãe uma concorrente ao amor do pai. Considerada rebelde e voluntariosa, freqüentemente chocava-se com a autoridade materna, situação que perdurou durante toda a vida.


Outra presença marcante na infância de Lou: Deus. Era o Amigo invisível, auxílio e proteção. "Eu não falava só de mim a Deus, de noite, no escuro: eu lhe contava, generosamente e sem ser convidada a isso, histórias inteiras. Essas histórias eram bem especiais. Elas provinham, parece-me, da necessidade que eu experimentava, de fazer o bom Deus participar do mundo exterior, tão presente ao lado de nosso mundo secreto; realidade da qual esta extraordinária relação me separava mais do que fixava solidamente. Não era, pois, por acaso que eu tirava dos acontecimentos reais a matéria de minhas histórias, dos encontros com pessoas, com animais, com objetos; Ter Deus como ouvinte bastava para assegurar-lhes um caráter feérico, que eu não precisava assinalar; tratava-se, ao contrário, de se convencer com precisão da realidade. Claro, eu não podia contar nada que Deus, em sua ciência e poder infinitos, já não o soubesse; mas era justamente o que garantia a meus olhos a realidade indubitável de minhas histórias, e era por isso que, não sem satisfação, eu começava sempre por essas palavras: Como tu sabes..."


Mas, no momento em que Lou se convenceu de que podia dirigir a sua vida sem a ajuda do grande Amigo, ela o abandonou. Isso tornou-a mais dura, mais exigente consigo mesma, mais autodisciplinada.Lou acreditava ter perdido a fé já há algum tempo, quando ouviu a pregação do pastor protestante Hendrik Gillot. As palavras ouvidas refletiam os pensamentos da adolescente, que procurou por ele. A vontade de aprender, o espírito curioso de Lou despertaram a atenção de Gillot, que lhe ensinou matérias que não eram oferecidas tradicionalmente nas escolas: filosofia, lógica, teoria do conhecimento, metafísica, teologia. Ensinou também literatura francesa e filosofia alemã. Aconselhou-a a ler Descartes, Pascal, Voltaire, Rousseau e Kant, dentre outros.Nessa época, o pai faleceu. A mãe tentou em vão interromper a formação intelectual de Lou conduzida pelo pastor considerado excessivamente liberal. Parecia até que estava adivinhando o final da história. Um tempo depois, Gillot, casado, pai de duas filhas que regulavam idade com Lou, declarou-se para a adolescente, pedindo-a em casamento. Lou ficou chocada. Afinal, via-o quase como um sósia de Deus."O que eu havia adorado desertou, de uma vez, de meu coração e meu espírito, e se tornou estrangeiro para mim. Sentir algo que possuía exigências próprias, e não se contentava apenas com realizar as minhas, mas, ao contrário, as ameaçava e buscava mesmo desviar do caminho reto os esforços que eu fazia para me encontrar, e pelo qual ele era responsável. Era realmente um outro homem que estava diante de mim; um homem que eu tinha divinizado e que, sob esse véu, eu não tinha podido perceber claramente."


Lou optou por renunciar aos encontros com Gillot, apesar de continuar considerando-o um grande amigo.Aos 19 anos, Lou deixou São Petersburgo, levando consigo sua fome de conhecimento. Após breve passagem por Zurique, onde o clima não favoreceu sua saúde, mudou-se para Roma. Munida de uma carta de recomendação, procurou Malwida von Maysenburg, uma mulher extraordinária, que abrira mão de títulos de nobreza para dedicar-se à "ajudar a emancipar a mulher dos limites que a sociedade lhe impôs".


A feminista simpatizou de imediato com Lou, reconhecendo-se nela quando jovem. Lendo os poemas que Lou lhe mostrou, comentou: "Grandes tarefas a esperam, falaremos disso muitas outras vezes".


Na casa de Malwida, Lou conheceu Paul Rée, que lhe causou certa impressão. Paul Rée tinha 32 anos, era filósofo e já havia publicado três livros. Rée assistiu alguns cursos de Nietzsche, de quem tornou-se grande amigo.A primeira conversa entre os Paul Rée e Lou foi definitiva para o início dos laços de amizade. Depois desta, várias outras aconteceram na casa de Malwida e em passeios pelas ruas desertas de Roma, sob a luz do luar. O sentimento que ligou Rée a Lou não demorou a se transformar em amor. Mas, unilateral. Lou admirava Paul Rée. Tinha até um plano ousado para a época – passarem a morar juntos, como amigos. Nada mais do que amizade.Esse plano, é claro, encontrou a oposição da mãe de Lou e até mesmo de Malwida, que expôs que tal acontecimento daria lugar a comentários que atingiriam a reputação da jovem. Malwida reafirmou sua confiança na amiga, na sua capacidade de discernimento, na pureza de seus propósitos. Mas, advertiu que era preciso não dar ao mundo este tipo de armas, era preciso não dar ao mundo o direito de se enganar a nosso respeito.Rée e Malwida haviam escrito para Nietzsche sobre a nova amiga. Ambos a descreveram com grande estusiasmo. Rée convidou o amigo para ir até Roma com o objetivo de conhecer Lou e acrescentou que pensavam em organizar uma comunidade, onde os três estariam juntos.Nietzsche aquiesceu. Chegou à Roma de surpresa e Malwida indicou o provável local onde acharia os amigos – uma pequena capela anexa à catedral de São Pedro. Era ali que os dois encontravam tranqüilidade para estudar. Nietzsche aproximou-se do casal, absorto em suas leituras, estendeu a mão em direção a Lou e perguntou: "De que estrelas caímos nós para nos encontrar aqui?".


Desde esse primeiro encontro, a idéia da Santa Trindade tomou corpo. Pensaram em instalar-se em Viena. Depois, acharam que Paris seria melhor. Só que algo aconteceu, ameaçando o futuro da Santa Trindade: Nietzsche também apaixonou-se por Lou e foi tomado pela idéia de desposá-la.Preocupados em não chocar o amigo, cuja saúde era frágil, Paul Rée, orientado por Lou, contou a Nietzsche que Lou tinha aversão pelo casamento. Além disso, havia o problema financeiro. Lou recebia uma pensão do governo russo após a morte do pai, à qual perderia o direito após um casamento. Como Nietzsche não tinha boas condições financeiras, esse argumento acalmou seus propósitos, sem, no entanto, eliminá-los.Em fins de abril de 1882, Lou e a mãe viajaram para o norte da Itália. Nietzsche e Rée foram encontrá-las em Milão e juntos foram para a região dos Alpes. Num final de tarde, depois de um passeio, Nietzsche teve finalmente a chance de ficar à sós com Lou, enquanto a senhora Salomé e Rée descansavam no hotel. Os dois decidiram fazer uma caminhada até o Monte Sacro, uma colina encantadora de 915 metros. O passeio durou bem mais que a uma hora prevista. O que aconteceu durante o passeio foi mantido em segredo. Nietzsche escreveu para Lou: "eu devo a você o sonho mais bonito de minha vida". E Lou disse anos depois: "não me lembro se beijei Nietzsche em Monte Sacro".Pouco depois, os quatro se separaram. A senhora Salomé, a filha e Paul Rée foram para Locarno e Nietzsche visitou os amigos Overbeck em Bâle. Os amigos ficaram surpresos com a boa forma do filósofo. Viam-no sempre em crises e dessa vez mostrou-se conversado, feliz e confiante.


O grupo encontrou-se novamente em Lucerne, onde os três amigos tiraram uma fotografia que ficou bastante famosa. Nela Lou estava sentada numa charrete segurando um chicote, enquanto os amigos estavam na frente da charrete, presos à mão de Lou através de cordas. Nessa ocasião, Nietzsche propôs casamento para Lou, que rejeitou prontamente a idéia.Mais uma vez, o grupo separou-se. Lou viajou para Berlim com o irmão mais novo. Rée foi para a propriedade da família em Stibbe, na Prússia Ocidental. Por sua vez, Nietzche, após breve passagem por Bâle, oportunidade em que os Overbeck constataram o seu desespero, foi para a casa de sua família em Naumburg.A correspondência entre os amigos ficou mais intensa nesse período. As cartas de Rée para Lou exprimiam seu imenso carinho, evidenciando o grande amor que sentia. Nietzsche era mais reservado com relação aos sentimentos, tentando esconder a tristeza que a distância de Lou lhe causava e o abatimento que a recusa da amada lhe causou. Lou era sempre a mesma: espontânea, despreocupada, com sede de viver, deixando-se amar. Lou foi passar o verão em Stibbe, devidamente escudada pela mãe de Rée. Lá os amigos passaram dias felizes, fortalecendo a amizade entre os dois.


Em julho, Lou deixou Stibbe e se dirigiu para Bayreuth, onde Malwida a esperava para juntas assistirem ao festival. Lá encontrou pela primeira vez a irmã de Nietzsche, com quem já trocara algumas cartas. Elizabeth Nietzsche era uma bela mulher de 36 anos. Protestante rígida, ficou chocada com a liberdade de pensamento de Lou, sua preferência pela companhia masculina, seu sucesso junto aos homens. Já não gostava de Lou, antes mesmo de conhecê-la, pois sentia ciúmes do irmão. Apesar disso, viajou com Lou para Tautenburgo, onde Nietzsche passava o verão. Mas, estava disposta a proteger o irmão da mulher "imprópria". A cada dia, Elizabeth se escandalizava mais com Lou: como uma mulher podia falar tão abertamente sobre Deus, sexo, moral? Além disso, desaprovava os longos passeios que fazia com Nietzsche pela floresta e o fato do irmão permanecer no quarto de Lou até tarde.Nietzsche, mesmo sentindo a tensão ao redor, estava muito feliz. Jamais conversara com tanta profundidade sobre todos aqueles assuntos que o interessavam com uma mulher, ainda mais uma mulher jovem e bela. Queria transformá-la em sua discípula, queria que Lou pudesse ser a herdeira de suas idéias.Quanto a Lou, encontrava-se totalmente atraída, mas não pelo homem, somente pelo filósofo, que alimentava a sua fome de saber. Ela não se preocupava com o mal que poderia estar causando ou vir a causar a uma pessoa extremamente sensível. Nas cartas que escrevia a Rée, além de contar o dia a dia, analisava a comunhão espiritual e intelectual que descobrira ter com Nietzsche.A estada de Lou em Tautenburgo provocou um rompimento entre os irmãos Nietzsche, o qual Elizabeth fez questão de tornar público. Escreveu para os amigos do irmão longas cartas denegrindo a imagem de Lou, distorcendo fatos, criticando, julgando.


Ao deixar Tautenburgo, Lou entregou a Nietzsche um poema que havia escrito meses antes. Este texto foi musicado pelo filósofo.

Claro, como se ama um amigo
Eu te amo, vida enigmática –
Que me tenhas feito exultar ou chorar,
Que me tenhas trazido felicidade ou sofrimento,
Amo-te com toda a tua crueldade,
E se deves me aniquilar,
Eu me arrancarei de teus braços
Como alguém se arranca do seio de um amigo.
Com todas as minhas forças te aperto!
Que tuas chamas me devorem,
No fogo do combate, permite-me
Sondar mais longe teu mistério.
Ser, pensar durante milênios!
Encerra-me em teus dois braços:
Se não tens mais alegria a me ofertar
Pois bem – restam-te teus tormentos.

Lou retornou para Stibbe para passar o outono com a família Rée. Os amigos trocavam correspondências com Nietzsche, pois estavam preocupados com os reflexos das desavenças com a irmã em seu espírito.Os três encontraram-se novamente em Leipzig. No começo, tudo corria bem, apesar do clima não ser exatamente o mesmo de outrora. Cada um deles trabalhava em algum projeto. Lou fazia um estudo sobre a história das religiões, que Nietzsche lia e comentava. Ele a achava "um pequeno gênio" e ficava feliz em colaborar com o trabalho. Depois, Nietzsche começou a tecer duras críticas ao rival. Pouco a pouco, Lou foi perdendo o encanto pelo filósofo.Assim, Lou e Rée partiram para Paris, onde passaram a dividir a mesma casa, sempre como amigos, contrariando as expectativas de Rée, a quem Lou via como um irmão.Nietzsche escreveu várias cartas mostrando a sua amargura e revolta, nas quais falava sobre um possível suicídio.


"Como sua amizade é mirrada, ao lado da do amigo Rée! Como você é demunida de respeito, de gratidão, de piedade, de polidez, de admiração – pudor – sem falar de coisas mais elevadas. Que responderia se eu lhe perguntasse: você é corajosa? É incapaz de traição? Não tem consciência de que um homem como eu, junto de você, deve fazer grandes esforços sobre si mesmo? Eu poderia facilitar as coisas em minhas relações com você: mas já fiz muito esforço sobre mim mesmo, com relação a muitas coisas, e me acredito ainda capaz disto: lhe ser útil, mesmo se você me prejudica. Você tem em mim o melhor dos advogados, mas também o mais impenitente dos juízes. Quero que você julgue a si própria e fixe, você mesma, seu castigo. Minha cara Lou, tome cuidado! Se eu afasto você de mim agora, será uma terrível censura de todo o seu ser! Você esteve em contato com um dos homens mais indulgentes e mais bem intencionados: mas note bem que o nojo é para mim um argumento suficiente contra todos os pequenos egoístas e todos os pequenos fruidores. Sou vencido pelo nojo mais facilmente do que as pessoas o crêem. Mude de opinião, volte a você mesma! Nunca me enganei sobre ninguém: e há em você esta aspiração a um egoísmo sagrado que é uma aspiração à obediência com relação ao que há de mais alto – e você a confundiu, em razão de não sei que maldição, com seu contrário, o apetite ladrão do gato, da vida unicamente pelo amor da vida. Quem poderá ainda freqüentar você, se você solta o freio a todos os traços mesquinhos de sua natureza! Você prejudicou, você fez mal – não somente a mim mas a todos os que me amavam – esta espada está suspensa acima de sua cabeça."


Elizabeth Nietzche, sabendo do sofrimento do irmão, retomou sua campanha contra Lou. Achava o maior dos absurdos sua coabitação com Rée. Nietzsche sofria com tudo isso, mas acabou juntando-se à irmã. Tudo isso não afetou Lou, que não revidou aos ataques sofridos, permanecendo silenciosa e independente. Lou e Rée viveram juntos em Berlim, depois de uma temporada em Paris, por cinco anos. Sempre como irmãos. Foram bons anos para Lou e Rée. Ela encontrou no amigo um companheiro "de uma nobreza de alma absolutamente única". Os amigos brincavam que Rée era a dama de companhia de Lou. O temperamento alegre da amiga refletiu em Rée, que mostrava-se menos atormentado e mais confiante. Foi nessa época que começou seu sucesso como escritora, com o livro "Uma luta por Deus", o qual assinou como Henri Lou.


Lou tinha 26 anos quando conheceu o professor de língua persa Carl Andreas, quinze anos mais velho. Para espanto de todos, o casamento aconteceu em junho de 1887.Lou sentiu-se na obrigação de aceitar o segundo pedido de casamento, após uma tentativa de suicídio de Andreas. Mas, foi um casamento estranho, que de fato nunca se concretizou. O acordo entre os dois previa que Andreas não faria valer seus "direitos" de marido. Nunca houve contato físico. Além disso, Andreas deveria respeitar a liberdade da esposa e ficou acertado que as relações entre Lou e Rée não mudariam.Apesar de Rée aparentemente ter concordado com a situação, um profundo mal estar surgiu. Rée, então, decidiu mudar-se de Berlim."A noite em que ele me deixou se inscreveu em letras de fogo na minha memória. Ele partiu muito tarde, voltou ao cabo de alguns minutos porque chovia muito. Depois de algum tempo ele partiu de novo, mas não tardou em voltar para apanhar um livro. Quando se foi, a aurora rompia. Olhei para fora e me surpreendi: a rua estava seca e pálidas estrelas rareavam num céu sem nuvem. Afastando-me da janela, vi, à luz da lâmpada, uma pequena fotografia de mim criança, que pertencia a Paul Rée. Ela estava colocada num pedaço de papel dobrado onde li: Tem piedade, não procura."


Lou, um ano depois da partida do amigo, registrou em seu diário sobre a falta que Rée lhe fazia. Sonhava sempre com ele e chorava."Às vezes acontece que meus gestos ou minhas palavras se assemelham aos teus – sem o querer, por acaso – sinto sempre nesses momentos que me és querido. Lembro-me que um dia, bem no meio de uma briga me disseste com um misto de bondade e ironia: "se nós brigássemos de verdade e anos depois por acaso a gente se encontrasse – que felicidade seria para todos dois!" E teus olhos se encheram de lágrimas. Penso muito nisso atualmente e me digo: Sim, sim."


Nos primeiros anos de casada, Lou escreveu Personagens femininos de Ibsen. Na introdução, ela contou a história de patos selvagens, que ignoravam o que seria o mundo fora do ambiente em que foram criados – um sótão. No outono, um deles sentiu que a natureza o chamava e partiu. Outro, conformado, vivia a sonhar. Um terceiro, que havia chegado ao sótão ferido, renunciou à liberdade anterior. Um quarto pato selvagem morreu de remorso por ter maltratado os outros. Outro, diante da possibilidade de fuga, terminou renunciando a ela. O sexto, não teve coragem de ir definitivamente, mas não se conformava com o confinamento, representando talvez a própria autora.Após o sucesso desse livro, Lou começou a escrever com mais freqüência. Em 1894 escreveu Friedrich Nietzche em sua obra e, em 1895, o romance Ruth.Também em 1895, Lou conheceu o médico vienense Friedrich Pineles, que tinha então 27 anos. Pelo que parece, este foi o homem que desvirginou Lou. Essa ligação durou cerca de doze anos. Toda vez que Lou ia a Viena, hospedava-se na casa de Pineles. Este insistia sempre em que ela pedisse o divórcio para que pudessem realizar o casamento. Em maio de 1897, Lou foi apresentada ao poeta René-Marie Rilke, quatorze anos mais jovem que ela. No dia seguinte, ele escreveu um bilhete, contando que era o autor de poemas anônimos que Lou estava recebendo e que considerava que a havia conhecido meses antes da noite anterior, quando leu o ensaio escrito por ela, chamado Jesus o judeu. Pediu, então, para conhecê-la melhor. Nos dias que se seguiram, Rilke continuou assediando Lou, através de cartas, telegramas e bilhetes.


"Ontem ao meio-dia havia bastante sol para dourar todo um reino – mesmo um reino pobre e não muito pequeno. Mas o ouro apenas não basta. Eu estava muito triste. Errei, algumas rosas na mão, pela cidade e à entrada do jardim inglês, para lhe oferecer estas rosas. Sim, em vez de as depositar diante da porta de chave dourada, carreguei-as comigo por toda a parte, tremendo com a necessidade de encontrá-la em algum lugar. Entretanto, foi mais ou menos quando se joga uma carta ao mar, para que as vagas a conduzam até as margens do amigo para quem se destinou. A carta está certa de se perder ao largo e afundar. O mesmo com minhas rosas. Ao meio-dia, quando abandonei estas buscas e vi o rosto triste das pálidas flores, a angústia dolorosa da solidão me invadiu."


A abundante correspondência entre os dois só terminou com a morte de Rilke: 134 cartas e bilhetes de Rilke e 65 de Lou. A passagem de Lou na vida de Rilke foi de fundamental importância para o crescimento do poeta – ela lhe ensinou a buscar a essência das coisas. E Lou, pela primeira vez em sua vida, encontrou um homem que a atraía intelectualmente e fisicamente. Algumas semanas depois do primeiro encontro, alugaram uma casinha nos arredores de Berlim. Logo depois se mudaram para uma espécie de granja, numa colina, em Wolfratshausen. Ficaram ali durante o verão e receberam Andreas no outono. Enquanto este passava horas trancado no quarto estudando, Lou e Rilke passeavam pela floresta, discutindo os projetos de vida. Foi Lou quem decidiu que o nome René-Marie era muito feminino, mudando-o para Rainer Maria. Em abril de 1899 Lou, Andreas e Rilke foram para a Rússia. Passaram uma semana em Moscou, onde foram recebidos por Tolstoi durante duas horas. Depois, dirigiram-se para São Petersburgo, onde Rilke conheceu a família de Lou. A redescoberta do país natal ao lado do homem amado fizeram com que Lou desabrochasse por completo: "Hoje posso ser o que os outros são aos dezoito anos, hoje posso ser eu mesma". Quanto a Rilke, começou a produzir de modo intenso.


Depois de dois meses, o trio retornou para a Alemanha. Mas, a experiência da viagem foi tão marcante, que nova viagem à Rússia aconteceu um ano depois, desta vez sem a presença de Andreas. Rilke sentiu o amor pelo país de Lou mais vivo. Reencontraram Tolstoi, mas desta vez este mostrou-se distante, inclusive criticando negativamente a poesia. Atravessaram o país, vendo paisagens encantadoras. Eram recebidos por camponeses, que davam lições de simplicidade, absorvidas com prazer por ambos. Tentaram rever a família de Lou em São Petersburgo, mas estavam na residência de verão, na Finlândia. Lou decidiu partir para a Alemanha e deixou Rilke sozinho na cidade natal. Na verdade, Lou estava um pouco apreensiva com os estranhos acessos de depressão e exaltação de Rilke. Sentia que o poeta deveria conquistar sozinho o domínio de si mesmo.Longe de Lou, Rilke resolveu passar algumas semanas na casa de um amigo. Foi quando conheceu Clara Westhoff, uma escultora aluna de Rodin. Ele a pediu em casamento, surpreendendo Lou, que lhe escreveu uma carta alguns dias antes das núpcias. "Agora que tudo é sol e calma ao redor de mim e que o fruto da vida conquistou sua redondeza madura e doce, a lembrança que nos é certamente ainda cara a nós dois daquele dia de Waltershausen, em que vim a ti como uma mãe, me impõe uma última obrigação (...) Se te aventuras livre no desconhecido só será responsável por ti mesmo".


Pouco depois, recebeu o seguinte poema escrito por Rilke:

"Permaneço no escuro como um cego
Porque meus olhos não te encontram mais
A faina turva dos dias para mim não é mais que uma cortina que te dissimula.
Olho-a, esperando que se erga esta cortina atrás da qual há minha vida a substância e a própria lei da minha vida e, apesar disso, minha morte.
Tu me abraçavas, não por desrazão mas como a mão do oleiro contra o barro
A mão que tem poder de criação.
Ela sonhava de algum modo modelar – depois se cansou, se afrouxou deixou-me cair e me quebrei.
Eras para mim a mais maternal das mulheres, eras um amigo como são os homens, eras, a te olhar, mulher realmente, mas também, muitas vezes, criança.
Eras o que conheci de mais terno e mais duro com que tenho lutado.
Eras a altura que me abençoou – te fizeste abismo e naufraguei."

Rilke casou-se com Clara em março de 1901, fato que não interrompeu a correspondência com Lou. Escrevia sempre, contando as alegrias e tristezas, aconselhando-se, buscando apoio, enviando poemas para críticas. "Ninguém me conhece como tu", escrevia Rilke. O poeta amadurecia, mas o homem permanecia carente de conselhos e proteção.No mesmo ano do casamento de Rilke, aconteceu a morte de Paul Rée – uma morte com a qual Lou sofreu pelo resto da vida, sentindo-se de certa forma responsável, pois pairava a suspeita de suicídio.Pineles, consultado sobre o abatimento de Lou, recomendou-lhe repouso e passeios. Foram juntos para o Tirol, onde Lou descobriu-se grávida. Pineles decidiu contar para Andreas, desejando que ele concedesse o divórcio. Lou não permitiu, alegando que Andreas poderia atentar contra a vida do médico. Mas, a gravidez foi interrompida como conseqüência de uma queda sofrida por Lou ao colher maçãs. Foi o início do enfraquecimento da relação entre os dois, a qual durou alguns anos mais.

Essas experiências levaram Lou a refletir sobre o amor e o sexo. Ela publicou em 1902 um livro de contos, Na zona crepuscular e em 1910 o ensaio denominado O erotismo."Na base do erotismo está a sexualidade, lembra Lou, e ela é uma forma de necessidade física, como a fome, a sede ou qualquer outra forma de manifestação de vida de nosso corpo. Como ainda se conhece pouco – não esqueçamos que o artigo é de 1910 – parte do mecanismo que a produz, isto é, as glândulas de secreção interna, não podemos nos dar conta da influência da sexualidade sobre a totalidade do indivíduo, mesmo quando a atividade sexual dirigida para o exterior desaparece, como, e Lou cita exemplos, quando se elimina a matriz ou o membro viril e nesses casos os ovários e testículos permanecem, fazendo com que não desapareçam os caracteres sexuais secundários. A pulsão sexual pode ser um elemento de estímulo na totalidade da vida dos sentidos, escreve Lou, lembrando o caso de jovens doentes para os quais a experiência da sexualidade foi fator de cura, ou de moças anêmicas que desabrocharam, mesmo num casamento não desejado, adquirindo forças sob a influência de modificações em seu metabolismo."

Durante a primeira grande guerra, Lou estava na Alemanha, ao lado de Andreas. Dificuldades financeiras, notícias de mortes de parentes e amigos, acontecimentos tristes... Embora perturbada, Lou conservava seu característico otimismo, o qual Freud tanto admirava.A Revolução de Outubro de 1917 fez com que Lou perdesse a pensão que recebia do governo russo, por ser filha de general, que a ajudou a manter-se durante tantos anos. Soube que a família foi obrigada a compartilhar a residência com os empregados.Essas novas experiências pelas quais passava o país natal fizeram nascer em Lou a nostalgia, que ela retratou no livro escrito em 1923 – Rodinka (A pequena pátria), dedicado a Anna Freud.Os anos foram passando e Lou foi dividindo o seu tempo entre congressos, reuniões sobre psicanálise e seus pacientes, além de escrever artigos para revistas especializadas.


Em 1928, dois anos após a morte de Rilke, ela escreveu a biografia do poeta. Em 1931, tornou pública sua gratidão para com Freud, publicando o livro Carta aberta a Freud, quando este completava 75 anos. Nesse livro, através de uma suposta conversa com o amigo, ela contou suas experiências como analista e abordou questões colocadas pela psicanálise.Andreas morreu ao 85 anos e Lou começou a sofrer de diabetes. Ela presenciou a Alemanha enlouquecendo com as idéias de Hitler, que não simpatizava com Freud. Os amigos aconselharam-na em vão a mudar-se do país.Com problemas de visão, conseqüência do agravamento do diabetes, pediu ajuda ao amigo fiel da última fase da vida, Ernest Pfeiffer. Entregou a ele todos os seus papéis e correspondência para que os publicasse postumamente. Na noite de 5 de fevereiro de 1937, morreu durante o sono. Foi cremada e suas cinzas foram depositadas no túmulo de Andreas.Dias depois da morte, a Gestapo confiscou seus livros e papéis, por considerar a psicanálise um ciência judaica.Postumamente, Ernest Pfeiffer publicou quatro livros de Lou, incluindo a autobiografia intitulada Revendo minha vida.